Quem assistiu Downton Abbey, a série britânica escrita por Julien Fellowes sobre a vida na residência aristocrática do mesmo nome, se deparou com uma representação da sociedade de classes britânica no começo do XX no microcosmo da casa do “Conde de Grantham”. No andar de baixo, os empregados, o “núcleo pobre”; no de cima, a família de aristocratas, o “núcleo rico”. Ocasionalmente eles se encontram nos corredores, mas alguns tem a “virtude” de serem invisíveis. Nessa representação cheia de açúcar e onde não chove nunca no Yorkshire, os aristocratas vão para a biblioteca tomar um uísque (os homens) depois do jantar. As mulheres sentam-se perto da lareira. Dois sofás vermelhos ladeiam o fogo. Conversam, não tiram um livro da estante jamais e depois vão dormir. ‘Assassinato em Gosford Park’ foi escrito pelo mesmo autor. Mas a direção é de Robert Altman e é o mesmo universo, só que sem açúcar. Na biblioteca, para onde o senhor da casa se retira depois de ser ofendido pela esposa no fim do filme, acontece o clímax da narrativa, justamente o assassinato do título. Numa estória que lembra o jogo de tabuleiro ‘Detetive’, com a diferença que quem cometeu o assassinato - e como - aqui não tem a menor importância.
O que eu quero dizer com isso é que as bibliotecas, nessas representações, tem o mesmo papel: primeiramente, por ser um ambiente masculino: é onde está armazenado o conhecimento, aqui fisicamente significado pela presença dos livros e quem detinha o poder é o homem. As mulheres dificilmente ficam inteiradas dos negócios da propriedade. Depois, a biblioteca não é só onde estão os livros. É também onde está aceso o fogo, é um lugar de acolhimento. É um lugar repousante, de socialização - mesmo que sempre da elite. As bibliotecas de hoje, o que têm para tirar dessas bibliotecas? As bibliotecas são mais que repositórios digitais, mesmo que esses sempre possam ser acessados de qualquer lugar, porque antes de mais nada bibliotecas são lugares. São lugares onde as pessoas se encontram, onde as pessoas vão. Por isso, devem ser acolhedores. Bibliotecas devem se parecer com a casa da gente: nós não somos parecidos com o Conde de Grantham, então talvez nossas bibliotecas não precisem ser tão opulentas como a dele; as pessoas podem se sentir intimidadas. Mas todos gostam de lugares bonitos e de lugares acolhedores. As representações da ficção são isso, representações: a literatura não retrata só as coisas boas, retrata também as más. Nós, sempre juntos, não separados, é que discernimos o que devemos trazer para as nossas práticas e para os nossos espaços.
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