Em 2019, uma pergunta que todos se faziam era: “você assistiu Bacurau?”.
Bacurau, filme dirigido por Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles (uma direção dupla e, portanto, dialógica e colaborativa) é um filme que tem como protagonista uma comunidade: não é uma personagem, mas toda a comunidade de Bacurau, uma pequena localidade no sertão de Pernambuco. É um filme sobre resistência: resistência a um entorno autoritário e hostil, o Estado brasileiro. Numa estória que a gente conta, cada elemento tem outros significados que contribuem para a mensagem geral e nada é por acaso. Logo no início do filme, quando da chegada de uma moradora no caminhão pipa, vemos as ruínas da escola pública perto da placa que diz “Bacurau 17km - se for, vá na paz”. A escola pública está ali, a 17 km da cidade, em ruínas, onde também vemos uma antiga carcaça de um camburão policial. Bacurau está e não está inserida no Estado - porque o Estado não a incluiu. Ela, no entanto, resiste.
A verdadeira escola de Bacurau é mantida pelo professor e o professor é um dos líderes comunitários; há outros: uma médica, um matador, a matriarca cujo enterro e despedida abrem a película.
A escola também abriga uma biblioteca e é com a desculpa de “doar” livros para essa biblioteca que o prefeito visita a vila, além de “recolher retinas”. Como o pássaro Bacurau, “pássaro brabo”, os moradores não se fazem ver: escondem-se em plena vista, estão ali, mas a cidade parece vazia. Os livros doados pelo prefeito serão selecionados junto com todo mundo: despejados com descaso de um caminhão, nem todos farão parte da biblioteca. Na biblioteca comunitária não entra qualquer coisa, mas “aquilo que interessa” e que se pode usar.
Bacurau também abriga um museu, com uma linda expografia de objetos e fotos e armas antigas: é um museu de resistência, que conta a história do lugar, guarda a sua memória. Para os habitantes de Bacurau, quem visita a cidade o faz para ver o museu: é o coração da comunidade. Nesse museu é que ocorre o desenlace do filme, o confronto final com aqueles estrangeiros que querem tirar Bacurau do mapa. Depois do confronto, a museóloga - Bacurau tem até uma museóloga, diz: “Vamos limpar bem o chão. Mas as paredes deixem como estão. Infelizmente”. As paredes estão sujas de sangue: memória dos últimos terríveis acontecimentos, preservada nos muros. Infelizmente.
Faço um convite para que, através da representação da escola, do museu e da biblioteca
de Bacurau, fazermos uma reflexão sobre as nossas bibliotecas, nossas escolas, nossos museus: espaços de resistência contra o autoritarismo hostil à cultura que nos rodeia e quer nos destruir. Espaços
de resistência contra a tirania, nós, que também estamos nas bibliotecas, nos museus e nas escolas, seguimos; mas não podemos esquecer dos valores de colaboração, de preservação
da memória, da nossa identidade e da nossa diversidade dentro da unidade, que são os valores democráticos que ensejamos preservar. Nas próximas semanas, vou tentar escrever sobre outras representações
de bibliotecas e espaços de memória em filmes e livros. Estou aberto a sugestões e irei acatá-las, se souber o que dizer.
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