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“Precisamos de bibliotecas públicas cidadãs”

Lourival Lopes Cancela
É o que defende o bibliotecário pela FESPSP Lourival Lopes Cancela, personalidade já reconhecida por sua ação vitoriosa em favor das bibliotecas comunitárias e do resgate do ser humano.


Lourival tem uma história de encher o coração. Seus olhos profundos e sua fala pausada articulam claramente ideias fortes com uma melodia suave. Encanta quem se dispõe a ouví-lo e conquista admiradores com o conhecimento de quem esteve nas ruas e viu de perto uma realidade que preferimos ignorar. Superou, venceu com muito estudo e determinação, e ganhou o mundo. E prêmios também.

Eleito Mister Colofão 2013, já ganhou o Prêmio Viva Leitura em 2011 por seu seminal trabalho no albergue Arsenal da Esperança, no centro de São Paulo, onde era um acolhido. O ex-aluno da FESPSP acumula experiências no Instituto de Saúde do Estado de São Paulo, na Fundação Memorial da América Latina, no Instituto Brasil Leitor e no Memorial do Imigrante. Recém-empossado como Analista Sociocultural, prepara-se para começar uma nova trajetória como servidor público e especialista em Gestão Arquivística. Na entrevista a seguir, Lourival fala com toda propriedade sobre bibliotecas comunitárias, resgate de pessoas em situação de rua e de sua mais nova paixão pela gestão documental.   

LOURIVAL: A minha trajetória, como você falou, é sempre bom ser lembrada, pode muitas vezes ser recontada porque ela não parou, eu terminei o curso de Biblioteconomia e Ciência da Informação na FESPSP em dezembro passado. A formatura foi em março e logo em seguida já me matriculei no curso de Pós Graduação em Gestão Arquivística.

MC: E o que você está achando dessa pós graduação?

LOURIVAL: Maravilhosa, estou encantado, sou suspeito pra falar porque estou descobrindo a gestão documental, até então eu tinha uma vaga ideia.

MC: Você tinha mais experiência em biblioteca, não é?
Lourival começa uma nova experiência com gestão documental

LOURIVAL: Isso, em biblioteca. A gente tem a arquivologia durante a graduação, mas é bem pouco. E na pós-graduação é diferente, o aluno tem um comportamento diferente, uma visão diferente. Esse curso vem complementar a graduação em Biblioteconomia e Ciência da Informação por que nós não aprendemos apenas a gestão de documentos, mas toda a questão de um arquivo: o arquivo como um local de trabalho, como um serviço da empresa para os funcionários. A gestão que nós temos durante a graduação vai ser muito mais aprofundada. Neste curso, nós aprendemos a gerir pessoas, a gerir processos, sob um ponto de vista mais voltado para a lida direta com a equipe de trabalho e a equipe geradora de documentos e criadora dos processos. Então, é um avanço do ponto de vista de aprendizado, é um salto onde você mergulha em um mundo mais profundo de muitas matérias que foram dadas durante a graduação. Está me acrescentando muito. As primeiras matérias são muito sobre gestão de pessoas, gestão de processos, e uma visão da arquivologia integrada.

MC: E como fica a questão social no arquivo?

LOURIVAL:  O arquivo de modo geral é aberto aos servidores de determinada instituição mantenedora ou responsável pela produção dos documentos daquele arquivo... Então, a questão social perde um pouco o foco nesse sentido. esse enfoque, pois a produção de documentos envolve a produção de documentos dos funcionários da empresa, da equipe, terceirizada ou não, mas ela está a serviço de uma outra instituição produtora. E não é aberta ao público. Existem muitos documentos que nem todos os funcionários podem ter acesso (documentos contábeis, de RH, de folha de pagamento), são restrições dentro do próprio setor de trabalho. Restringe, na verdade, a visão social daqueles documentos.

MC: É burocrático?

LOURIVAL:  Sim, mas é burocrático no bom sentido, é preciso ser. Estamos lidando hoje em dia com excesso de documentos, muitas vezes gerados ao bel prazer do funcionário responsável por determinado setor. E há muita reprodução. Então, quando a gente fala em gestão de documentos ela não existe sem um controle de produção de documentos porque, de um modo geral, tudo pode ser considerado documentos por uma empresa ou um setor. E as várias cópias devem mesmo ser guardadas? Por quanto tempo? Se guarda-se, vai acabar acontecendo o que acontece em muitas bibliotecas, que é o problema de espaço físico. A biblioteca pode se especializar em atender determinado público, já o arquivo não. Aplica-se, então, a teoria das três idades: o arquivo corrente, que passa a intermediário, que pode ser aberto a pesquisadores.

MC: Você pretende aplicar isso na biblioteca do Arsenal? Você ainda está lá?

LOURIVAL: De alguma forma sim, mas não presencialmente mais. O último ano da graduação e o TCC, me forçou mesmo a sair um pouco, tive que criar asas. Claro que era necessário, eu precisava também visitar outras instituições. Prestei serviço em outras bibliotecas, implantei software de sistema de bibliotecas, de controle na revista OCAS (que também atende aos moradores em situação de rua, principalmente aqueles que querem deixar os albergues e deixar as ruas por meio da venda da revista.

Então o local onde a revista está, ali no Brás, não muito longe do Arsenal também,  existe uma estante de livros e o desejo de disponibilizá-los para qualquer pessoa que chegar ali e batesse na porta.... eles oferecem alguns trabalhos também de serviços sociais para essas pessoas, bem específicos mesmo, focados nas necessidades dessas pessoas, através da biblioterapia e de outros meios voltados para a psicologia, para a psiquê desses usuários e eu ajudei com conhecimento técnico, eu implantei o PHL, o mesmo que nós usamos no Arsenal, e deixei os voluntários cuidando. O Arsenal, como partiu muito de mim, hoje eu dou apoio técnico via email, telefone, em relação à catalogação, à descrição, CDD, Pha. Faço isso pouco, gostaria de estar mais presente, mas não moro mais lá, não sou mais um acolhido, não sou mais vizinho como fui durante anos, e depois fui trabalhar em uma empresa na Raposo Tavares então, dificultava o acesso ainda mais para mim, e no final de semana deixava para os trabalhos escolares, minhas pesquisas, meus outros projetos, então acabei me afastando. Mas, eu carrego comigo o Arsenal.

MC: E com muito orgulho, e a FESPSP carrega também toda essa sua belíssima história.

LOURIVAL:  E agora o meu projeto de pesquisa científica, em vista do trabalho de conclusão de curso da pós- graduação, consiste em unir a gestão de documentos com a área social. Eu quero falar dos documentos pessoais, não arquivos pessoais, não aqueles que você gera ao longo de sua vida, não a sua biblioteca, não todos os documentos, os livros que citam sua história, seu nome, sua pessoa, ou foram escritos por você ou para você. Eu quero tratar daqueles documentos referentes a cidadania mesmo. Um dos grandes problemas que enfrentou, conviveu, teve que lidar no Arsenal foi a questão do desemprego pela falta de documentos que gera também esse desemprego. É além da falta dos requisitos exigidos por muitas empresa. Muitas pessoas, muitas mesmo, uma quantidade inimaginável de pessoas que perderam seus documentos ou ainda não têm. E sobrevivem. Mas, essas pessoas não são cidadãs. O elemento básico para se tornar um cidadão é  o registro, a certidão de nascimento, depois o RG e o CPF,  e a carteira profissional. Sem esses documentos, ou sem os principais que são a certidão de nascimento e o RG você não existe para o Estado. Então, como ajudar a essas pessoas, o que fazer? Como vivem essas pessoas? Por que estão nessa situação? Eu quero abranger isso, a importância dos documentos pessoais e a cidadania.
Lourival recebe premiação no Miss(ter) Traça 2013
   Temos pessoas que foram registradas, principalmente as que migraram do norte e nordeste do país, registradas há trinta, quarenta anos atrás em cartórios que não existem mais, em cidades que não existem mais, em distritos que viraram municípios. Esses documentos foram para onde? Foram para outra instituição, para outro cartório. O trabalho das assistentes sociais na rede de acolhidas da prefeitura é muito grande por que elas se veem diante dessa dificuldade: querem ajudar as pessoas, até para serem acolhidas elas precisam de algum documento. Como tirar uma segunda via de identidade sem uma certidão de nascimento? Quem ainda não perdeu, mas vive com familiares ou amigos que ficaram lá onde nasceram, onde viveram, conseguem que alguém vá lá e tire segunda via da sua certidão. Mas, há uma grande busca, um trabalho até arqueológico dos assistentes sociais em procurar onde está essa certidão de nascimento, onde foi parar, em qual cartório, e a partir dai essa pessoa consiga sua cidadania, possa ter direito aos serviços oferecidos aos cidadãos e reconstruir a sua vida, com dignidade, portanto esses documentos necessários para sua existência, sua permanência e sobrevivência. Esse link que eu quero fazer, não consigo esquecer a experiência que eu tive na vivência, troca de ideias, nas conversas com um número enorme de pessoas em situação de rua que eu conheci lá no albergue, e também antes e depois dele, e sempre que eu reencontro é aquela alegria e aquela satisfação.

MC: Quais os benefícios que o seu prêmio trouxe para a Biblioteca do Arsenal?  O Arsenal tem uma ONG forte por trás e conta também com o apoio da prefeitura e do governo do estado.

LOURIVAL: Essa ONG continua, hoje ainda mais forte. Mas, melhor que mudança física e estrutural, é mudar a visão das pessoas. Infelizmente, as bibliotecas comunitárias trazem em si um histórico, (como todas as bibliotecas, na verdade) de nascerem sob um jugo de cima para baixo. Essa foi uma questão que tivemos que trabalhar na Biblioteca do Arsenal e fizemos de uma forma bem natural, sem pressões: de tornar a biblioteca totalmente acessível para que as pessoas se sentissem refletidas no material do acervo, no tratamento dado pelos voluntários.  A acolhida é muito importante: ser visto ali como uma pessoa querida e valorizada. A biblioteca comunitária de um modo geral, mas principalmente aquelas voltadas para esse público, precisa ter essa especificidade: o foco dela é mesmo resgatar as pessoas, não só aquelas que estão em albergue. É preciso deixar para trás muito do que aprendemos na escola: como lidar com o usuário, como criar regras, regulamentos, penalidades...você tem que passar por cima de muita coisa se você quer trabalhar com o resgate do ser humano.
Muitas das bibliotecas de São Paulo já nasceram dentro da comunidade, de forma anônima, por meio de uma pessoa, que depois gerou uma associação de moradores, uma ONG, cresceu e até conseguiu patrocínio privado e se tornaram bibliotecas de reonome.

MC: Hoje observamos que o espaço físico antes ocupado pelas estantes nas bibliotecas estão sendo oferecidos aos usuários como áreas de convivência, mas não há uma mudança de valores que acompanhe este novo cenário, nem valores como os prezados pelas bibliotecas comunitárias. Elas continuam muito distantes das bibliotecas públicas. É impossível uma maior aproximação entre elas?

LOURIVAL: A gente até sonha que um dia as bibliotecas públicas se aproximem mais do usuário. É preciso mudar o foco, enxergar essas pessoas de uma outra forma, não apenas como um usuário que procura um  livro, que procura uma informação. Talvez, na verdade, o que ele procure na biblioteca não seja o que ele mais necessite. Sem projetos sociais, as bibliotecas públicas jamais se aproximarão da massa, nem do mais carente.

MC: E você acha que teria espaço para um projeto social dentro das bibliotecas públicas?

LOURIVAL: Sim, e as bibliotecas comunitárias só abraçam a sua comunidade quando elas prestam seviços além das estantes. Só uma estante com livros não atrai um bom público e nem atende às necessidades do usuário ou do cidadão. Precisamos de bibliotecas públicas cidadãs.

Para ouvir a entrevista completa com Lourival Cancela, envie um email para monitorcientificofabci@fespsps.org.br

Veja os slides da pesquisa sobre o perfi dos usuários da biblioteca do Arsenal da Esperança
Leia sobre a palestra Leitores de rua que Lourival apresentou na VII Semana de Biblioteconomia da ECA-USP 2012, no biblio.lab.



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