Em meio à
discussão sobre a redução da maioridade penal, a Monitoria Científica foi
buscar conhecer um pouco sobre as unidades de informação dentro de presídios. Como
trabalham esses profissionais? Cátia Lindemann, estudante de biblioteconomia, desenvolve o projeto Janela Literária na Penitenciária Estadual
do Rio Grande (PERG), no Rio Grande do Sul, onde oferece o acesso à leitura para a população carcerária.Cátia é um exemplo da luta e garra dessa
categoria. Acompanhe sua emocionante história:
Cátia Lindemann, 41
anos, é gaúcha da cidade de Rio Grande, RS. Morou 23 anos na cidade do Rio
de
Janeiro. Voltou para o sul há poucos anos para cuidar de seus pais, que
necessitavam de cuidados e um olhar mais atento da única filha. Sua área de
atuação sempre foi as artes, área que sempre lhe proveu o sustento para criar
sozinha as duas filhas gêmeas. Cátia fazia esculturas em espuma, papel marché e
papelagem.
![]() |
Cátia posa sobre a mesa feita de livros de descarte |
A volta para
o Rio Grande
“Logo
que retornei para Rio Grande, segui no mundo das esculturas em espuma, o que
por aqui era ainda inusitado e foi no pedido de um cenário em espuma para
teatro que conheci uma agente penitenciária da PERG”, explica Cátia. “Foi
durante a execução das peças que ela ia comentando comigo que a Penitenciária
não possuía biblioteca e que os detentos não tinham acesso algum a nenhum tipo
de livro.” Este foi o ponto de partida para Cátia começar a desenhar o projeto
Janela Literária, uma ação para levar a leitura aos detentos daquela unidade prisional.
Mas como fazer? Cátia não tinha a menor ideia.
A combinação
perfeita
Quando
decidiu fazer o Enen em 2010, Cátia já tinha decidido como executar o seu
plano. Tinha encontrado o que lhe parecia ser a combinação perfeita:
Biblioteconomia + presos + livros. Passou na primeira chamada na Universidade
Federal do Rio Grande (FURG) e tratou de arregaçar as mangas para realizar o
que tinha arquitetado, e assim começou o seu périplo: “Tão logo comecei a
cursar Biblio, fui de professor em professor do curso levar minha ideia, a qual
foi rejeitada por todos...me rotulavam como louca, outros diziam que eu era uma
recém chegada no curso, que deveria esperar mais...outros quando eu mencionava
a palavra prisão, aí nem me davam ouvidos. Assim o tempo ia passando e eu
sozinha elaborando meu projeto, já no papel e com bons argumentos, mas sem
ninguém para acreditar em mim”, conta a bibliotecária.
Biblioteconomia
e Sociologia
![]() |
Cátia está de camiseta preta na foto à esquerda, abaixo |
Aluna do 5º semestre de Biblioteconomia da FURG, Cátia trabalha na Biblioteca Central
há dois anos, no setor de Referência, e divide seu tempo entre o trabalho, o
Janela Literária, as filhas e os objetos que cria com livros de descarte. Com
tantas atividades, continua sonhando alto e vivendo o que considera ser a
verdadeira arte: “Na minha humilde concepção, a Biblioteconomia é arte em sua
essência...a arte que cria, educa e faz a mediação da informação.”
Na
entrevista abaixo, gentilmente concedida por email, Cátia explica outros
detalhes do Janela Literária:
MC: Conte-nos como a ideia da leitura como processo
de libertação lhe motivou a dar forma a esse projeto de reintegração social.
CÁTIA: De
posse da informação de que a Penitenciária Estadual do Rio Grande (PERG –RS)
não possuía biblioteca e acreditando que a leitura pudesse ocupar o tempo
ocioso do preso, considerei de que modo poderia concretizar este sonho de levar
conhecimento a quem não tem acesso ao conhecimento. Ora, em se tratando de
cárcere, poucos, para não dizer raros, se atrevem a montar qualquer coisa neste
sentido.
Então, busquei
a Biblioteconomia como instrumento para realização deste projeto, afinal, na
minha concepção, a Biblio lida com o tesouro mais precioso da humanidade : a
informação, e dentro deste contexto estão os livros.
Tão logo comecei
o curso, fui em busca de embasamento para o projeto e tomei ciência de que
temos a Resolução nº 14 do Conselho Nacional de Política Criminal e
Penitenciária, de 11 de novembro de 1994, publicada no DOU de 2.12.1994 Titulo
1, Capítulo. XII, Das instruções e assistência educacional, art. 41, que
afirma: "Os estabelecimentos
prisionais contarão com bibliotecas organizadas com livros de conteúdo
informativo, educativo e recreativo, adequados à formação cultural, profissional
e espiritual do preso".
Bem,
então utilizei o respaldo de que, por Lei, todo estabelecimento penal deveria
ter biblioteca. Isso foi em 2011. Exatamente em 29 de junho deste mesmo ano foi
sancionada a lei 12.433, que define como direito do apenado, além da redução da
pena por meio do trabalho, também a redução da pena por meio do estudo.
Descobri também que a Superintendência dos Serviços Penitenciários (Susepe)
pressionava a PERG para que esta fizesse esta lei, mas para tal era necessário
programar o Ensino de Jovens e Adultos (EJA) dentro da Penitenciária. No
entanto, o EJA colocou que só poderia estar lá mediante a presença de uma
Biblioteca. Ou seja, tudo veio a somar para a realização do Janela Literária.
No
entanto, passei muito tempo com este projeto em baixo do braço buscando alguém
que acreditasse nele. Era necessário ser um docente da Universidade. Consegui apoio
da Drª Leni Colares, professora de sociologia, que havia feito seu doutorado
dentro do Presidio Feminino Madre Pelletier, em Porto Alegre. Tinha, portanto,
conhecimento de causa e assim o projeto tornou-se multidisciplinar, pois estava
atrelado à Sociologia e à Biblioteconomia.
Em 2012, junho
para ser mais precisa, fomos até a Penitenciária apresentar nosso projeto, que
foi de imediato aceito pelo diretor Guilherme Suedi Farias Ulguim. Dias depois
já tínhamos um espaço disponível para a implantação da biblioteca: tratava-se
de uma cela desativada. Em agosto já passamos a trabalhar naquele espaço,
enfatizando que tudo que obtivemos na época foi tão somente o espaço físico e
nada mais. Foi preciso ir em busca de tudo, do mobiliário aos livros.
MC: Partindo da premissa "A biblioteconomia
não pode mais centrar-se como técnica, ela é também social", o que você
considera como critério para entender que cada indivíduo pode virar a página em
busca da liberdade?
CÁTIA: Quando
escolhi o nome “Janela Literária”,
foi para fazer analogia à janela da cela
do detento, seu único contexto com a liberdade,
e o que é o livro senão uma janela para o mundo? Por meio do livro o
detento pode fazer seu caminho para a porta
de saída, preparando assim seu retorno à liberdade de tal forma que não precise
mais voltar ao contexto da janela na cela.
Aí entra
a Biblioteconomia Social, onde o profissional bibliotecário, além de fazer a mediação da informação, torna-se
também um agente de educação e cultura, indo além do cenário técnico
propriamente dito e fazendo seu papel na área social. É necessário catalogar saberes
a quem não os tem, e não apenas livros.
Lá na
PERG, além de classificar e catalogar os livros, nós os apresentamos aos
presos, não colocamos as obras simplesmente nas estantes, nós as lemos para
eles, tiramos suas dúvidas, os ensinamos a fazer pesquisa e isso é social,
fazer valer o papel de mediador da informação independente do lugar ou do
usuário.
Seria
ingenuidade acreditar que o preso vai olhar para o livro e simplesmente passar a gostar de
ler. Os detentos gostam de fazer uso da barganha...eles agora entendem que por
meio dos estudos podem ter sua pena reduzida e assim passam a se interessar
pela leitura. Mas, alguns acabam seduzidos pelo habito de ler e, se obtivermos
êxito com um ou dois, tudo já terá valido a pena.
MC: Quais as dificuldades que você encontrou
durante o percurso? O Estado deu algum apoio para a concretização na
implantação da Biblioteca?
CÁTIA: A
maior dificuldade foi e tem sido a falta de verba. Ressalto novamente que tudo
que obtivemos foi o espaço para implantação da biblioteca. Quando o local nos
foi entregue, houve ampla divulgação na mídia¹, pois até então ninguém tinha se
interessado em montar uma biblioteca na PERG.
A
Fundação Gaúcha dos Bancos Sociais nos doou 5 mil livros, porém só nos foram disponibilizados
260 obras e as demais só haveriam de vir mediante a biblioteca já pronta e em
atividade. A juíza da Vara Criminal da cidade, presente na entrega simbólica da
chave da biblioteca, diante da imprensa, nos desafiou alegando que projetos
eram belos no papel e que ela queria ver se de fato aquela ideia iria sair do
papel.
Somos
cinco pessoas neste projeto (várias pessoas se dispuseram a trabalhar com a
gente, mas o local as assustava e acabaram desistindo no caminho): eu e mais
três colegas de Biblioteconomia e a Prof. Leni Colares, da Sociologia. Temos
também a participação voluntária da Bibliotecária Dóris Vargas, sem vinculo
institucional algum com o projeto, que nos ajuda por amor à causa mesmo,
dando-nos todo suporte dentro do processamento técnico dos livros. Fazemos tudo
manualmente, pois não temos nenhum tipo de automatização...nem computadores
temos, e internet lá nem pensar. Numa empreitada
totalmente voluntária, sem ganhar um centavo e trabalhando em horas
intercaladas com nossos trabalhos remunerados, nós olhávamos em volta daquele
espaço vazio e simplesmente não sabíamos como fazer para obter a mobília sem
possuir um só centavo. Enviamos o projeto para todos os órgãos governamentais e
nada...tentamos a imprensa, mas depois da solenidade de entrega do local eles
nem nos deram mais conversa. Então saímos de porta em porta pedindo doação do
material necessário e foi assim que obtivemos as estantes, mesas e cadeiras.
Todos em estado lastimável, mas era o que tínhamos. Cheguei a chorar quando vi
aquele material dentro da Biblioteca, até que um preso colocou a mão no meu
ombro e me disse: “Fica assim não dona,
nós vamos deixar isso aí novinho.” Eles então lixaram as estantes e
pintaram, pegaram as quatro mesas cheias de cupim e transformaram em duas
perfeitas, adaptando o que estava boa em uma na outra.
Vamos
inaugurar oficialmente a Biblioteca, agora, no dia 28 de maio.
Extraoficialmente, ela já está em funcionamento, já emprestamos livros aos
detentos, fazemos leitura com eles, bem como outras atividades as quais já
mencionei.
Passamos
por vários sufocos em relação ao planejamento físico da biblioteca, pois
existem as regras que se aprende na teoria, mas dentro da prisão é necessário
“adaptar e muitas vezes reinventar as regras” da biblioteconomia, ou seja, tudo
que nos é ensinado durante nossa formação passa por adequações. Lá dentro as
estantes deviam ficar na vertical, assim as obras não pegariam sol, que vem das
janelas gradeadas ao alto da parede, porém nos foi colocado que devemos manter
sempre contato visual com o preso e tivemos de coloca-las na horizontal. As
obras devem passar por um crivo minucioso, nada de livros de química, leitura
que possa incitar violência ou fornecer informação que não lhes cabe, como foi
o caso de um livro cujo nome era A
construção de tuneis (dá pra entender o motivo né? rs).
Ontem,
dia 16, o Janela Literária finalmente
obteve verba, mas a mesma só há de vir em 2014. Nossa esperança é que, depois
da inauguração oficial, possamos obter estantes decentes, as quais não
precisaremos ficar alternando o peso dos livros com receio que as mesas caiam
sobre nós; que o restante dos livros possam vir e, por fim, que fique
explicitado que nosso projeto não ficou no papel.
MC: Qual foi a reação dos encarcerados à primeira
vista? Houve alguma resistência?
CÁTIA: Quando
chegamos à PERG, os detentos nem nos olhavam. Existe uma regra na prisão em
que, ao passar por nós, o encarcerado deve olhar para parede ou baixar a
cabeça. Aos poucos, íamos nos familiarizando, alguns deles foram recrutados
para nos auxiliar no que precisássemos, como descarregar caixas de livros,
manutenção do espaço onde várias janelas estavam quebradas, não havia luz.
Certo dia, eu perguntei para um detento que nos ajudava qual era o nome
dele...ele respondeu timidamente que era “João”
, e então argumentei que ele podia olhar pra mim, ele o fez sorrindo. Na hora
de ir embora eu estendi minha mãe para despedir-me dele e de modo imediato ele
soltou: “Nem lembro a última vez que
alguém apertou minha mão dona...estou aqui há 13 anos e minha família já
desistiu de mim.” No dia seguinte
ele voltou e pegou um livro de cabeça pra baixo...eu fingi que não vi, mas ele
mesmo observou que a gravura da capa estava invertida...ele me fixou nos olhos
e disse:
“Já estou
matriculado no EJA, ainda vou entrar aqui e pegar um livro direitinho, pois
depois que passei a trabalhar aqui na biblioteca com vocês, me deu muita
vontade de sair lendo tudo que tem aqui nestas estantes. Aqui dentro a hora não
passa, quem sabe lendo a gente não sinta tanto isso.”
MC: Algum conselho aos leitores do blog da
Monitoria Científica?
CÁTIA: Jamais
desistam de seus ideais. Sonhos começam a ser realizados no exato instante em
que você acredita neles. Se todos caminharem na direção norte e você for junto
porque é mais fácil, então você será apenas mais um...mas, se rumar para o sul,
onde o caminho é complicado e desafiador, mesmo sendo minoria, você certamente será e fará a
diferença. Digo isso porque quando resolvi ir em busca de alguém no meio
acadêmico que acreditasse no projeto, ouvi inúmeros conselhos do tipo: “Vá
levar leitura para as crianças nas Bibliotecas Escolares de bairros
carentes”... “Há tantos outros lugares necessitando de projetos, cadeia é coisa
de louco.”
Continuo
certa de que valeu e vale cada percalço que encontramos no caminho, isso apenas
dá veracidade ao nosso sonho, hoje realidade.
O termo
Biblioteconomia social é pouco usado, mas dentro da atualidade não há mais como
aceitar o papel do bibliotecário apenas como documentalista tão somente
técnico.
Quem
sabe poderíamos acrescentar mais uma lei dentro das “Cinco Leis” de
Ranganatham: “A cada usuário a sua
Biblioteca”...
A
Sociologia, de mãos dadas com a Biblioteconomia, podem se constituir em
ferramentas importantes dentro do sistema carcerário, na medida em que auxiliem
os gestores a programar espaços educativos nos quais os presos possam canalizar
suas energias e encontrar alternativas para ampliar sua educação formal,
colocando-se, por esta via, em melhores condições para o retorno à sociedade
extramuros, além de alterar a rotina intramuros.
Dados
Referenciais do Projeto:
Projeto
de Extensão da Universidade Federal do Rio Grande - FURG
“JANELA
LITERÁRIA: A Biblioteca no Contexto Carcerário.”
Coordenadora
Resposável: Prof. Drª Leni Colares
Autora:
Catia Lindemann
Bibliotecária
Voluntária: Dóris Vargas
Integrantes:
Catia Lindemann, Madalena Monte, Andreia Gimenes e Elisabete Pacheco.
Local:
Rio Grande – RS
Endereço
da Biblioteca: Penitenciária Estadual de Rio Grande. BR 392 - KM 15 - Vila da
Quinta
Administrador:
Guilherme Suedi Farias Ulguim.
Parabéns,Catia. É disso que precisamos: bibliotecas para leitores em potencial, em qualquer hora, tempo, espaço. A função social da profissão precisa ser reiterada, sempre. Seu trabalho dignifica a profissão.
ResponderExcluirÉ isso mesmo, Samuel, temos o dever de oferecer uma contribuição social. Obrigada pela sua mensagem, continue acompanhando o blog da Monitoria!
ResponderExcluirEstou extasiada diante de tanto amor ão próxim.
ResponderExcluirSou aluna de Biblioteconomia e assim como a Cátia, pretendo trabalhar com detentos, e encontrei no projeto dela força para levar minha ideia adiante. Parabéns
ResponderExcluir