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O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso nos 80 anos da FESPSP |
O ponto alto da abertura das comemorações dos 80 anos da FESPSP foi, sem dúvida, a conferência do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) na manhã do dia 27 de maio, na qualidade de ex-aluno e membro do conselho diretivo da instituição.
Assim que
iniciou sua fala, confirmou todo o seu domínio de oratória e também de empatia
com o ouvinte, ao brincar com a plateia dizendo que estava muito satisfeito por
estar comemorando os 80 anos da escola, primeiro por que ela é um pouco mais
moça que eu”, disse, arrancando risos logo de saída. “E o segundo motivo de eu
estar aqui”, continuo FHC, “ é que o desenvolvimento da sociologia em São Paulo
deve muito a esta escola”. FHC lembrou do objetivo da Escola Livre de
Sociologia e Política (ELSP) na época de sua fundação: na São Paulo recém-derrotada
na revolução de 32, “havia um sentimento de que os paulistas deveriam conhecer
melhor” seu estado e para isso era preciso criar uma instituição que fosse
capaz de formar as pessoas e os quadros dirigentes brasileiros com uma visão
mais ampla”, afirmou. O ex-presidente mencionou a importância da pesquisa do
professor Samuel H. Lowrie, um dos quadros da Universidade de Colúmbia, que foi
convidado para integrar o corpo docente da escola. Sua pesquisa de campo envolvendo
os lixeiros de São Paulo (1936), segundo FHC, foi catapultada à fonte de
informação para, posteriormente, o governo de Getúlio Vargas definir as
categorias de salário mínimo. Ironias da história, o mesmo Getúlio contra quem
os paulistas tinham se insuflado anos antes, e perdido a revolução.
No panorama
histórico que desenhou, o ex-presidente lembrou-se da pujança do pensamento da
Escola de Chicago, que veio a se combinar com o pensamento de Lowrie por meio
de outra personalidade acadêmica americana: o professor Donald Pierson aportou
na ELSP nos anos 40, trazendo toda a dinâmica de uma sociologia de pura práxis.
“A escola de Chicago nos EUA teve um papel importantíssimo na redefinição da
sociologia americana por que eles tomaram a cidade como se fosse um
laboratório”, explicou FHC. “Muito antes dos economistas de Chicago serem
conhecidos, havia uma escola de Chicago de sociólogos, e que marcou época”.
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FHC examina placa comemorativa que recebeu no evento |
Do seio da nata
acadêmica de Ciências Sociais, FHC citou com naturalidade várias figuras-chave
históricas que foram seus professores. Um deles foi Florestan Fernandes,
sociólogo pela ELSP, que também se dedicou a discutir a questão de negros e de
raça e classe no Brasil, tema ao qual o próprio FHC também se dedicou anos mais
tarde, nos anos 1950. Gioconda Mussolini foi sua professora de antropologia, além
de Egon Schaden, ambos formados na ELSP.
Fundada no ano
seguinte à FESPSP, em 1934, a USP se beneficiaria da exuberância intelectual da
moderna escola livre recém-criada, especialmente a Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras (FFCHL), por anos. “A influência da ELSP sobre a Faculdade de
Filosofia e Ciências e Letras da USP, onde eu estudei, foi muito grande”,
afirmou FHC. “Por que o Florestan fez mestrado aqui, aqui havia mestrado,
novidade na época. O mestrado foi criado na USP muito mais tarde. Eu mesmo
nunca tive título de Mestre, tive título de especialista, e daí se passava para
Doutor”, revelou.
“O número de pessoas que marcaram o desenvolvimento
cultural de São Paulo e que foram formados nesta escola é realmente muito
impressionante.”
E quem teve o
privilégio de conviver com tais personalidades contribuiu para firmar a
importância da ELSP. Alinhada com o que de melhor se produzia em Ciências
Sociais, a instituição atraía nomes substanciais de pesquisa, conforme FHC
relembra:“Pouca gente sabe, mas um dos
maiores antropólogos contemporâneos daquela época deu aula aqui: Radcliffe-Brown.
Ele só foi embora por que brigou com Pierson. O Radcliffe-Brown marcou a
antropologia moderna, juntamente com Malinowski.”
O ex-presidente
apontou outros fatos históricos importantes, explicando o contexto dos anos
1930: “Naquela época não havia muita distinção entre sociologia, antropologia e
nem mesmo economia, e psicologia social. Na verdade, nós estávamos interessados
na formação em Ciências Sociais. Havia uma paixão: a paixão pela sociologia
como saber científico. Pode parecer ridículo isso hoje, mas na época era assim.
E por que? A grande tradição brasileira era das interpretações do Brasil, que eram
baseadas muito mais em intuições, em ensaios. Por que os anos 30, precisamente,
nos deram o que tinham de melhor: Caio Prado, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque
de Holanda, todos eles escreveram na década de 30, foi uma década gloriosa. E
aqui faço uma pequena interpretação do porquê. Nós estávamos nos anos 30 em
grande crise mundial, por que de alguma maneira tivemos um processo forçado de
substituição de importações, por que tudo paralisou por lá, as guerras já
haviam feito isso, e havia uma política de valorização do café e houve o começo
de um ímpeto industrializador muito forte aqui. Então, não é por acaso que as
elites brasileiras começaram a tentar entender esse Brasil que estava se
modificando. E aí essa série de trabalhos do Gilberto Freire, Caio Prado e
Sergio Buarque, e outros trabalhos mais
empíricos, de maior rigor científico e de alguma maneira se orientaram mais por
processos micro que processos macro”, afirmou.
“No início dessa escola, a ideia era formar pessoas
capazes de grandes interpretações”
FHC explicou que
sua formação pela FFCHL-USP foi de uma geração posterior a esse, com menor
ênfase às técnicas de pesquisa, mas graças ao intercâmbio entre as duas
escolas, principalmente na figura de Florestan Fernandes, os alunos da USP
também foram obrigados a aprender técnicas de pesquisa. Relembrou da
precariedade dos recursos de pesquisa nos anos 1950, com os grandes
computadores da época que emitiam os cartões perfurados para processar os
dados.
No confronto com
a realidade hoje, FHC destaca a necessidade de se entender os processos
sociais: “Nós olhamos o desafio de hoje com o desafio do passado, e de alguma
maneira permanece uma necessidade de entender os processos sociais, mas existem
melhores recursos para se entender esses processos. O avanço imenso que se deu
nas Ciências Sociais, na especialização em várias áreas do conhecimento, baseado
em informações que são reguladas, é notável. Não sei se acompanhado com a mesma
capacidade que tiveram os grandes ensaístas dos anos 30, para formar análises
mais globais sobre o que acontece no país. E, em geral, o desafio que países
como os nossos têm para se situar e as pessoas têm para entenderem o mecanismo
da sociedade estão ligados a processos que são mais globais. No passado,
podíamos ter ainda a ilusão que, estudando isoladamente a nossa região, o nosso
país, o nosso estado, nós fôssemos capazes de entender o conjunto. Mas hoje em
dia isso é muito mais difícil, é muito pouco provável que assim seja”, disse.
O ex-presidente
deixou claro que o caráter global é determinante na organização dos processos
produtivos e na visão de mundo das pessoas: “Como é que nós vamos nos situar e
entender o mundo que se globaliza? pergunta, explicando que isto é algo também
bem diferente de tudo aquilo que se pensava nos anos 70, quando a tônica era a
discussão do desenvolvimento e subdesenvolvimento. “O nosso modelo era ainda
da possibilidade de manter os traços
autárquicos da formação do Brasil, na economia brasileira”, disse. “Hoje
ninguém pensaria nisso”por que a pauta é para “integrações produtivas.“Imaginar
que essa globalização vai se homogeneizar é não entender nada”, concluiu.
E colocou a
questão para o Brasil: “Como é que vamos readaptar as nossas instituições, as
nossas políticas, as nossas práticas à nova situação na qual não há mais opção
de ficar fora?”. Esperançoso de que há
como absorver deste cenário um benefício para o povo e para o interesse
nacional, está ciente, por outro lado, que a tarefa não é fácil. “Isso tem
incidência na política.”
Para o
sociólogo, “as pessoas têm muita dificuldade em entender que estão vivendo um
novo momento”, acredita ele.
“Eu gosto da brincadeira que,
se o Lênin fosse vivo, ele escreveria um novo trabalho: em vez de “O
imperialismo: fase superior do capitalismo”, seria “O pós-imperialismo”.
Estamos vivendo uma época
pós-imperialista, ou seja, o processo econômico se integrou e integrou, através
do processo produtivo, dispensando, em larga medida, a ação dos Estados; por consequência,
das forças armadas; e por consequência, a guerra, que deixou de ser, no
horizonte, o fator decisivo para manter
predominância. Lateralmente, existe, sobretudo, as questões religiosas, mas as
questões centrais, os grandes embates, não se dão mais com a visão e a
imposição armada de uns poucos sobre os
outros, nem com a necessidade do uso da
força para garantir matéria prima, o abastecimento. É pós-imperialismo. E custa
às pessoas entenderem isso, muitas vezes raciocinam como se estivéssemos ainda antes
dos anos 70, quando começou o fim da União Soviética. Então este é o desafio
maior de todas aqueles que querem pensar. E não pode ser um desafio que se
resolva, simplesmente, como estou fazendo aqui, falando vagamente. É preciso
que seja um desafio que seja entendido através da capacidade, que já existe,
das ciências sociais, de um conhecimento mais objetivo, mais documentado, mais
específico, mais determinado”, ressaltou.
Ao final, FHC
agradeceu o convite e a referência de que foi presidente do conselho da FESPSP
e afirmou que “se hoje nós podemos falar com mais segurança sobre muitos temas
é por que aqui se começou a ensinar como é possível lidar com temas macro, com
um conhecimento e uma competência que nos permita evitar o devaneio e
construir, realmente, arcabouços sólidos do conhecimento.”
Veja mais fotos do evento aqui.
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