E temos mais um conto escrito pelo talentoso e criativo Gabriel Justino (6º Semestre/Noturno)
para a série: Era Uma Vez...
Vejam como até um assunto tão tabu em nossa cultura pode
ser retratado de forma poética e divertida:
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Fonte: Rebloggy |
Olá!
Sou incompreendida,
ninguém me entende, na verdade acho que as pessoas me odeiam, mas o que eu
posso fazer se tenho que fazer meu trabalho? Sei que é um peso muito grande e
um fardo enorme, fazer o que faço, mas ninguém está preocupado se eu me sinto
bem.
Deixa eu me
apresentar, eu sou Tessa, mais conhecida como Morte. Espere um pouco vai, não
pare de ler esse meu breve relato só porque sou eu. Mesmo que pare de ler,
ainda vamos nos conhecer, mais cedo ou mais tarde, você vai ver, tenho te
observado.
Minha casa é grande,
mas poderia ser mais tecnológica como a da minha irmã, que tem um painel
eletrônico mostrando todos os bebês que nascem todas as operações que deram
mais uma chance de vida para as pessoas, e todo aquele negócio que dá mais uma
chance de viver para as pessoas, mas nãoooo, o meu sistema tem que ser rústico
e a minha casa tem que ser maior e cheia de velas para eu cuidar das vidas que
serão ceifadas, quer dizer, não que minha casa não seja bonita, mas as velas
também não ficam jogadas, elas ficam no “Jardim das Vidas”, que é enorme com milhares
de árvores e as velas são penduradas em seus galhos, o fogo não é fogo que
vocês conhecem é claro, mas é o fogo da vida e aqui eles têm outro sentido.
Vocês precisam ver como fica lindo o jardim quando anoitece e as velas dão um
toque muito lindo ao jardim, dava até para fazer um jantar romântico, mas eu
iria fazer um jantar romântico com quem? Se ninguém quer ver a morte, imagina
ir num encontro romântico com ela. Claro
que você deva conhecer uma história como essa já que o querido Eugênio Amado
fez questão de retratar em seu livro “O homem que enganou a morte”, claro que
ele ocultou algumas partes, mas faz parte da minha história.
Vamos ao que
interessa, funciona assim, toda vez que um ser humano nasce, minha irmã vem me
visitar, ou seja, ela sempre está aqui, aproveitando para comer e beber de
graça, afinal sou muito hospitaleira e ela sempre abusa de minha hospitalidade.
Ela me traz a vela que representará a vida daquele ser, vou até o jardim e coloco
na árvore que representa aquele país, é claro que algumas árvores são imensas,
mas convenhamos que árvore nenhuma daria conta e por isso tenho mais do que uma
árvore por país, as velas são de variados tamanhos e quando a chama está quase se
extinguindo, eu sei que é hora de buscar essa pessoa e essa vela deixa de fazer
parte do meu jardim.
É claro que a ideia não era levar pessoas precocemente,
mas temos algumas interferências, algumas escolhas que essas pessoas ou que
outras fazem que acabam por abreviar os dias delas aqui neste lugar.
Não sei o que te
contaram ou como você me imagina, mas não ando por aí vestida de preto e com o
aguilhão nas mãos, queridos deixa eu explicar, não é assim que funciona, até
porque aquele treco está ultrapassado há uns 2000 mil anos, ninguém usa
mais. Eu gosto muito de usar um vestido
confortável, prefiro usar um vestido branco, com uma jaqueta de couro por cima
e uma bota, que está super na moda, e acalma mais as pessoas quando as
encontro. Ficam boquiabertos quando descobrem que morreram e que eu sou a morte,
claro que a primeira pergunta que fazem é: “por que eu?”, muitas vezes é muito
fácil responder como, por exemplo, você comeu gordura de mais na sua vida,
entupiu as veias do seu coração, nunca foi ao médico, aí ficou difícil não te
buscar.
E tenho que mostrar o caminho que ela terá que seguir só mostrar porque
não estou autorizada a falar do além da travessia, fazer o quê? Ossos do
ofício. Mas também tem momentos muito difíceis, quando tenho que ir ao
hospital, ceifar a vida de um pequenino com câncer, ou de um garoto que
estudava muito, e foi assassinado pela Guarda injustamente, mas creio que vocês
já leram essa história em algum lugar, não é mesmo? Quem sabe um dia não ajudo
vocês a descobrirem como foi feita justiça para esse pobre inocente? Além do
mais, não posso interferir, por mais que me doa ceifar e ver vidas se esvaindo,
não posso mudar o destino delas.
As consequências de uma interferência podem
gerar uma reação em cadeia que pode desestruturar o equilíbrio natural da ordem
das coisas. A lei é essa, se eu não quiser levar uma vida, outra deverá ser
levada no lugar, são as consequências e já paguei um preço muito alto por essa
escolha no passado.
Vamos pular essa
história toda do meu oficio, afinal de contas, vocês já estão carecas de saber,
o ciclo da vida. Vou contar um pouco o que gosto de fazer nos tempos livres,
isto é, quando me sobra algum. Apesar de ter que cuidar do jardim (leia-se
ficar atenta a todas as velas junto aos meus estagiários e aprendizes e cuidar
de cada árvore), existe um lugar tranquilo, em que posso relaxar e buscar
conhecimento.
A biblioteca da minha casa está numa área que não possui nenhuma
vela por perto, é claro que você devia saber disso néh, afinal livros mais
fogo, não é definitivamente uma boa combinação, Alexandria está aí para provar,
não que foi acidental; minha biblioteca é enorme e tem algumas janelas que vão
do chão até o teto e que dão vista para o Jardim, quando olho para lá, sentada
em minha mesa ou na minha poltrona, fico me perguntando que histórias
maravilhosos eu lerei assim que aquelas chamas se apagarem, mas enfim, possuo
todo conhecimento da humanidade, tudo o que foi escrito por essas vidas que
ceifo e também mantenho o registro da vida de todas as pessoas, na verdade esse
é um trabalho conjunto da Vida e eu, a propósito ela que é minha irmã (adora
uma boquinha livre), assim que o painel a avisa que um ser humano está para
chegar, ela encomenda um livro em branco para os ajudantes dela, e começam a descrever tudo o que essa pessoa
fará: todos os planos, sonhos, frustrações, alegrias, tristezas, medos,
realizações, conquistas e tudo o que possam imaginar.
Logo após a vela se
extinguir, o livro vem para a minha biblioteca, para fazer parte da “coleção de
histórias que um dia serão conhecidas por todos”, existem histórias
maravilhosas de todos os continentes, de todas as épocas e que poderiam ser
contadas e recontadas. Por isso os conheço tão bem, esse é o meu passatempo
favorito, catalogar essas histórias e deixa-las guardadas, pois, vamos utilizar
algum dia.
Meu outro passatempo
favorito, olha não sinto orgulho desse passatempo, mas admito que faço isso. Às
vezes, mentira não é às vezes não, quase sempre, seria o correto, espero que
minha irmã saia a trabalho e que os ajudantes não estejam por perto e entro
furtivamente na casa dela e vou até a Biblioteca de Registros, dou uma
espiadinha nas histórias que estão sendo escritas, você não achou que eu sabia
todas as histórias a partir dos livros que chegavam para mim?
Tá certo que ela
nunca me pegou, mas fico com o coração na mão toda vez que ouço um barulho e
tenho que correr para me esconder, afinal vai que minha irmã me pega
bisbilhotando os livros que não deveria ler ainda, ela surtaria comigo, capaz
de redobrar a segurança da biblioteca e colocar algumas medidas de segurança
para entrar lá como: um scanner de retina e impressão digital, além de deixar
um segurança 24 horas, isso seria tão triste, mas eu daria um jeito, a morte
pode até não ter jeito, mas eu dou um jeito nas coisas.
Acho que deve estar
perguntando onde arrumo tempo para ceifar vidas e ler livros, deixa eu contar
um segredinho para vocês, a eternidade é um negócio muito chato, você fica um tempão
ocioso e no meu ramo eu também tenho ajudantes, afinal não sou de ferro e não
estou em todos os lugares, tenho alguns funcionários, estagiários (leia-se
escraviários) e aprendizes (leia-se infelizes), eu mando e eles fazem o que têm
que fazer, é simples, prático e rápido, aliás quando me aposentar (se eu me
aposentar, porque do jeito que andam as coisas não sei não), alguém tem que
estar no meu lugar e assumir minha função, quando isso acontecer espero que
esteja linda e bela viajando esse mundão e visitando os meus amigos.
E por falar em amigos,
gosto de ir visitar meu amigo Caronte lá pelas bandas do Rio Estige, para ver
como anda o plano de aposentadoria dele.
— Sempre que chego
aqui tenho que ficar te esperando homem.
— Desculpa Tessa, é
que o Rio Estige está poluído, faz anos que ele não é mais o que era e o barco
acaba preso em algumas sujeiras, eles acham que aqui é depósito de esgoto, casa
da Mãe Joana, você sabe néh...
— Verdade, nunca vi
ele tão poluído como ultimamente, mas isto está fora do nosso alcance, não é
mesmo? Vim conversar um pouco, como andam seus planos de aposentadoria?
— Olha está bem
difícil! Primeiro porque é complicado achar um substituto, e segundo que o
plano Vitae Elisius, foi enquadrado na investigação Lete Limpo, que descobriu
que eles não estavam investindo o dinheiro na aposentadoria do pessoal, e
estavam roubando para tirar férias lá na Praia Cristalina...
— Que absurdo, mas
vai dar tudo certo meu amigo, você verá.
— E a sua irmã anda
muito ocupada?
— Nós duas
ultimamente estamos trabalhando muito, e ainda tenho que atualizar aquele
sistema de velas antiquado e cuidar das árvores sabe como é néh...
— Sei bem como é,
estou para conseguir um GPS para navegar melhor por aqui no rio.
Caronte é muito legal,
mas nossas conversas sempre capengam para aposentadoria, como está a família, a
atualização dos sistemas, os e-mails atrasados, as falhas no sistema, a
roubalheira, enfim, coisas desse gênero.
Como vocês podem ver,
minha vida é normal, tenho amigos, família, claro que o meu trabalho acaba
tirando a vida de uma ou outra pessoa, mas é algo que não controlo, só obedeço.
Espero que logo eu possa conseguir a autorização do Conselho Superior, para que
algumas almas possam visitar minha biblioteca e conhecer algumas histórias. Mas
enquanto essa autorização não vem, lembre-se que estou te observando junto com
minha irmã, em breve nos veremos, quer dizer, espero que nem tão breve assim.
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